O homem é o lobo do homem
Homo homini lúpus, o “homem é o lobo do homem” é uma frase consagrada no livro Leviatã (1651), do matemático e filósofo inglês Thomas Hobbes, e reforçada pelo pai do liberalismo, o filósofo John Locke, embora vestígios de sua origem venham da obra “Asinaria” de Plauto, dramaturgo romano que viveu entre 254 – 184 A.C.
É inevitável não pensar na célebre citação, quase quatro séculos depois, quando o Banco Central do Brasil lança a cédula de R$ 200,00 (duzentos reais) tendo por imagem a versão brasileira do lobo, nosso guará, que para uns carrega traços do típico cão “vira-latas”.
Considerando-se o limitado uso da cédula anteriormente de maior valor, de R$ 100,00, mais frequente nas malas dos noticiários policiais e políticos do que no bolso do povo, qual mensagem a autoridade monetária quer passar com uma nota voltada para os mais favorecidos, e cujo valor aproxima-se do auxílio emergencial?
Ao avaliarmos a história que vem se escrevendo no Brasil contemporâneo, aqui está o homem como predador do próprio homem, já que a desigualdade econômico-social não permite à presa uma sobrevivência digna, longe da desnutrição, doença, habitação deplorável e na maior parte das vezes sem acesso a saneamento básico.
O mau estado das coisas, pode, entretanto, se constituir em oportunidade de reversão, já que mesmos os economistas mais tradicionais estão percebendo que o caminho de desenvolvimento é diminuir a distância das classes sociais, não por bondade, altruísmo, ou compaixão, mas pelo crescimento econômico ao integrar mais brasileiros ao mercado de consumo, não entendido como supérfluos, porém de necessidades básicas.
Com este preâmbulo, vale analisar os principais dados da conjuntura econômica, afetadas pela combinação da pandemia, falta de orientação da política econômica e desorganização da política nacional, em que escândalos de corrupção tomam mais tempo do que medidas de crescimento.
Desemprego: o nível estrutural já é demasiadamente alto pela falta de educação pública de qualidade e do treinamento da população economicamente ativa para se adaptar aos novos tempos da tecnologia e competição acirrada nacional e internacional. Para além disso, o desemprego foi agravado pela falta de confiança que sucessivos governos instáveis imprimem ao ambiente econômico, além das atitudes extravagantes, retrógradas e obscuras, a falta de desejo de imprimir uma reforma fiscal que possa reverter a trajetória do crescimento da dívida pública, atualmente em uma situação entre “perto do impagável” e “limite de uma classificação de rating especulativo” perante o mercado mundial;
No segundo trimestre de 2020 o país tinha 12,8 milhões de pessoas sem trabalho. A taxa de desocupação aumentou 1,1 ponto percentual em comparação com o primeiro trimestre do ano (12,2%), e 1,3 ponto percentual frente ao segundo trimestre de 2019 (12,0%).
Pelos índices do CAGED – Cadastro Geral de Empregados e Desempregados do Ministério do Trabalho, o resultado de agosto ficou acima do registrado em julho de 2019, quando foram criadas 43.820 vagas formais. Em 2020, considerado o ano até agora, o saldo é gravemente negativo: nos sete primeiros meses do ano, foram perdidos 1.092.578 empregos, enquanto o mesmo período de 2019 registrou a abertura de 461.411 vagas.
Inflação: está supostamente contida pela falta de demanda, com o índice oficial do IBGE, o IPCA, em 2,3% nos últimos 12 meses. Mas a forte depreciação cambial esse ano põe em dúvida a sustentabilidade desse número, posto que o IGP-M, da Fundação Getúlio Vargas variou no mesmo período 13,0%. Como há uma parcela importante atrelada aos preços ao atacado, mais suscetíveis ao dólar, é de se esperar que haja repasse para o consumidor final em breve. Vale ressaltar que o IGP-M é o índice usualmente utilizado nos reajustes dos alugueis e outros contratos de serviços;
Selic: com a taxa básica de juros em sua mínima histórica, desestimula-se a poupança – para preservar o poder de compra da moeda, a antiga fonte de renda para muitos grupos de “classe média remediada”, que tem reservas na caderneta ou num imóvel de família alugado, ou ainda em pequeno negócio, secou. Isso leva à necessidade de correr mais risco no mercado financeiro, o que, dado o frágil conhecimento nacional sobre o tema, sugere que a população estará se expondo a riscos demasiadamente altos e que não compreende;
Reservas, comércio exterior e câmbio: muito embora as reservas internacionais estejam no patamar firme de US$ 360 bilhões, o que é uma tranquilidade em relação aos compromissos internacionais, no acumulado do ano, as exportações recuaram 6,5% e as importações, 10,2%, resultando em superávit comercial de US$ 26,2 bilhões, superior aos US$ 23,9 bilhões observados em período correspondente de 2019; exportações em queda são ruins, pois demonstram falta de vendas para o exterior e menor movimento da indústria e do setor agropecuário; importações em baixa podem significar queda nos investimentos e até mesmo do consumo, haja vista que os produtos importados tiveram o reflexo direto da variação cambial de 29 % nos últimos 12 meses (set/19 a set/20).
Atividade: mesmo com o impacto líquido positivo causado pelo superávit em conta corrente, o PIB do segundo trimestre de 2020 apresentou queda de 9,7% em relação ao primeiro trimestre do ano, que já havia por si só caído 2,5%. Com isso, além da recessão mais forte de nossa história, voltamos ao patamar de riqueza de 2009. Pelo lado da demanda, o resultado foi puxado pela forte queda dos investimentos (-15,4%) e do consumo das famílias (-12,5%). Pelo lado da oferta, isso se traduziu em desempenhos abissais da indústria (-12,3%) e serviços (-9,7%).
A debandada de grande parte da equipe econômica ainda merece muita explicação e a falta de reposição com rapidez e bons quadros nos leva a confirmar que a escalação do lobo guará para a cédula de R$ 200,00 é mais que uma ironia, é uma fonte de preocupação.
O Ministro da Economia diz que todos estes maus resultados são estatísticas do passado e que a economia já se recupera agora em setembro em ritmo de V, isto é, depois de forte queda um retorno rápido ao momento pré-pandemia, vamos torcer, acreditar e apoiar. E, não é que esta semana a demorada Reforma Administrativa deixa de ser apenas promessa para ir ao Congresso, como uma chama de esperança que se alumia?